quinta-feira, 29 de março de 2007

KVETCH - Companhia de Teatro ArteViva

A companhia do teatro municipal da cidade do Barreiro apresenta mais um grandioso espectáculo de arte dramática. Encenado por Rui Quintas, KVETCH tem atraído muitas pessoas, estando sempre lotação esgotada. É mais um dos imensos projectos que o ArteViva tem vindo a realizar desde há 25 anos, revelando ser um dos melhores espectáculos que a companhia organizou. KVETCH é para todos porque faz parte de todos nós, a maioria teme-o mas tem consciência dele, outros não se apercebem sequer... esses, ficam para trás, morrem porque chegaram ao fim da vida. KVETCH é tudo o que está no subconsciente que nos atormenta e que muitos recalcam para não sofrer, acabando por sofrer mais ainda, mais tarde, quando a consequência é a fusão da força psíquica com a física em que a parte física (mais uma vez) é derrotada… O resultado final: doenças psicossomáticas que podem levar à morte. A moral da história é, portanto, não deixar que os nossos fantasmas sejam mais fortes que nós, enfrentá-los de frente, mas, sem espada. Porque eles não podem morrer porque, na verdade, não existem, somos nós que os criamos e, em seguida, hiperbolizamo-los. Steven Berkoff, autor desta peça, traz à luz da nossa consciência o que não queremos ver nem entender, dá-nos a contemplar o mais sórdido do ser humano e, ao mesmo tempo de outra perspectiva, o que existe de mais humano no ser humano. É um drama que nos faz rir e nos faz chorar, que nos conduz à euforia e à disforia, e vice-versa. O espectador reflecte sobre aquilo que vê (característica do teatro Brechtiano) mas também se identifica com algumas atitudes das personagens. Há um desmascarar da sociedade e do próprio espectador. O elenco é constituindo por cinco actores: um casal com problemas a todos os níveis (ausência de carinho, de compreensão, obsessões diárias, dificuldade de expressão): o marido está farto da vida e do emprego de vendedor, pensa muitas vezes no suicídio, a mulher teve cancro da mama (tem um único seio) não se sente desejada nem amada, a sogra (personagem plana, inconveniente, metida na vida do casal), um colega de trabalho do marido (separado recentemente da mulher, tem o trauma da solidão) e um cliente do marido que, também, se separou da sua mulher recentemente e é amante da mulher que só tem um seio. Os conflitos surgem logo no início da peça com a primeira cena do casal e os seus problemas obsessivos: a confecção do jantar, as horas a que o marido chega e os entraves na comunicação (não conseguem dizer um ao outro o quanto se odeiam). A sogra está sempre por perto. Os conflitos continuam entre o marido e o colega de trabalho: são ambos bastante nervosos e não conseguem dizer com clareza aquilo que querem. Ao longo da peça há sempre quebras de ritmo, em que há uma personagem que sai do ambiente social em que está, vira-se para o público e começa a dizer o que pensa, ou seja, quando esta dá a conhecer os seus diálogos interiores, ficando as outras personagens estáticas. Esses momentos estão muito bem alternados com o diálogo, dando a sensação de paragem no tempo que leva o espectador ao êxtase, pois é aqui que se inscreve toda a problemática da história: os nossos pensamentos raramente estão sincronizados com as nossas acções revelando, assim, a grande hipocrisia a que estamos destinados. A peça termina quando as personagens soltam o seu KVETCH e dizem ou fazem aquilo que pensam realmente. O casal separa-se, ela fica com o cliente do marido que, também, deixa de lado os seus traumas amorosos e ele acaba por descobrir que é homossexual, ficando a morar com o seu colega de trabalho. O vocabulário é um pouco exagerado em que o excesso de palavrões remete para o carácter sexual da história e dos indivíduos. A sensação que este texto nos transmite é a de que não há nada a temer, pois somos todos iguais e, isso, é bastante reconfortante. Muitos destes medos existem porque não falamos abertamente sobre eles, porque não os tentamos entender e ultrapassar de forma tranquila e equilibrada. Na minha opinião a melhor forma de os ultrapassar é falar sobre eles e rir deles. Os problemas acumulam-se porque somos demasiados tímidos, mas a timidez já é uma característica de um primeiro recalcamento, segundo Freud, que acontece numa primeira infância. Somos demasiado tímidos para dizer aquilo que realmente pensamos, aquelas vozes interiores que nos fariam ser mais verdadeiros e mais humanos, porque essa voz interior é a nossa essência… Ora, como poderemos ser originais, verdadeiros, sermos nós próprios, se começamos logo a ignorar a nossa essência, o nosso verdadeiro EU? Eu diria que é uma peça controversa, que intimida os mais castradores e envergonha os mais puritanos. No entanto, é, apenas e deslumbrantemente, uma peça sincera que choca por falar na verdade. Porque a verdade é, por vezes, um pouco inconveniente para as sociedades convencionais, mal estabelecidas, que enferrujam o ser humano e a sua vitalidade, que proíbem a autonomia individual que poderia levar à solidariedade colectiva, que ordenam que sejamos todos iguais de uma forma totalmente contra-natura, e, no entanto, nós, na realidade, somos todos iguais mas andamos todos a fingir da mesma forma.

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